segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A Copa Que Vai e a Que Não Vai

Pode-se creditar uma boa dose de ingenuidade na conta de quem leva a polarização #vaitercopa/#nãovaitercopa ao pé da letra.

Vai ter Copa, claro. Mas também não vai ter. Não, pelo menos, naquela tranquilidade toda que deseja - e que vê naufragar - nossos governantes.

O grito no “não” soa mais como um repúdio e uma promessa do que uma certeza. A promessa é de dificultar ao máximo para mostrar o tamanho da indignação.

Achar que o evento será cancelado, aí já é ingenuidade.

Um professor muito gente boa que conheço, dia desses, no facebook, defendeu o “vai ter” e argumentou contra o “não vai ter”.

Defendeu que, desde a candidatura do país para sediar o evento e até pouco tempo atrás, ninguém foi à rua. Agora, em cima da hora, aparece o grito do “não”.

Segundo ele, há muito de politização no ato. Oposição à Dilma se aproveitando para desestabilizar.

Fazer fracassar a Copa é querer fazer fracassar um governo, e logo depois, como se sabe, vem eleição.

Em outras palavras (minhas, agora) aquele velho jeito de fazer política de oposição no Brasil: quanto pior, melhor.

Coisa que, lembremos, não foi inventada pela oposição de hoje - tendo sido muito utilizada pela oposição de ontem. Um espelho que pouca gente gosta de mirar.

Sim, ele tem razão. Há muito de politização e oposição rasteira no que está aí. Mas o grito do “não”, ao que me parece, não surge agora apenas por isso. Lembremos.

ORGULHO E VIRA-LATAS

No princípio, quando se soube que o Brasil ia sediar a Copa, dois sentimentos oscilavam e se misturavam no povão. O orgulho e o complexo de vira-latas.

O primeiro queria que o país, que vinha crescendo, coroasse esse crescimento com um evento global, para que essa gente bronzeada pudesse mostrar ao mundo seu valor.

O segundo, revirando lata, dizia que seria um fracasso, que o país, o governo e o povo não tinham ainda preparo para tamanho evento. Iam dar vexame.

Infiro, e assumo riscos, que este último, no fundo, desejava o contrário, mas preferia o pessimismo do discurso à ovação crédula, por achá-la ingênua.

Assim, infiro novamente, todo mundo, de alguma forma, queria Copa. Nem que fosse para provar que estava certo, caso desse errado.

Mas aí veio o que veio. Gastos públicos indecentes, atrasos, remoções de pessoas à força, a força da FIFA autoritária, cancelamento de obras que seriam legado. 

Bagunça. Aquela Copa linda, aos poucos, ia se revelando uma Copa suja, de mentiras, de promessas de infraestrutura se quebrando em efeito dominó.

Veio também junho de 2013 e vieram os Black Blocs.

Aquele orgulho do início, mesmo o duvidoso, virou grito: Copa para quê? Ou, melhor: para quem?

Na onda, claro, entram os aproveitadores. Mas isso não diminui a legitimidade das perguntas. Nem dos protestos.

Uma legitimidade, no entanto, que se relativiza muito no caso de quebradeira, depredação e ação de grupos violentos. Assunto para outra hora.

Já a Copa, realizada ou não, caminha para ser uma vergonha.

Opróbrio que surge por tudo que elucida sobre si mesma (o esporte, nela, é menos que detalhe) e pela gestão desastrosa, no Brasil, em sua preparação.

O desastre, no entanto, não nasce desse ou daquele partido. É endêmico de nossas instituições, é endêmico de nossa corrupção endêmica.

A Copa no Brasil, em seu propósito inicial de vitrine do país, pode acabar cumprindo seu ideal da forma mais verdadeira possível: se tornando, também ela, uma vitrine estilhaçada.

Os protestos têm de haver, porque estamos diante de uma possível dobra histórica, uma possível quebra de paradigmas no modo como o povo (re)age.

Com todos seus equívocos, é uma Copa bem-vinda, pois pode estar servindo para aglutinar insatisfações, revelar absurdos, indignar os passivos, fazer mover a gente.

Ela vai acontecer, mas o que acontecer ao largo dela talvez seja o acontecimento de verdade e de real importância.
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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Caso Kaique - Não era o que parecia. Mas, por que parecia tanto?


Não há como mentir. Também foi meu primeiro impulso espernear contra aquela conclusão da polícia, que parecia apressada, sumária. Certamente, parte desse impulso veio na esteira do que explodiu nas redes sociais. Somos todos influenciáveis e manter a ponderação em casos assim nem sempre é simples. Mas há outro aspecto que o caso e seus desdobramentos revelam. O caso a que me refiro é o do jovem Kaique.

Para quem não lembra, 12 dias atrás, Kaique, de 16 anos, foi encontrado morto sob o viaduto Nove de Julho, no centro de São Paulo. As primeiras descrições do estado em que foi encontrado ganharam ressonância a partir de declarações da família, segundo a qual o jovem estava desfigurado, dentes arrancados, sinais de chutes no rosto, uma barra de ferro trespassada na perna. Kaique era negro e homossexual.

Em poucas horas, a polícia registrou o caso como suicídio, seguindo esta linha nas investigações. Daí explodiu nas redes sociais, e até em uma manifestação no centro de São Paulo, a indignação contra o crime terrível de homofobia e discriminação racial de que Kaique teria sido vítima e a tentativa da polícia em minimizar o caso através da conclusão de suicídio.

Depois de toda repercussão, passados alguns dias, a conclusão parece irrefutável, com a própria família afirmando que foi, de fato, suicídio. Com exceção dos paranoicos conspiratórios de sempre, que vão dizer que a família foi forçada pela polícia, como ficam aqueles que esbravejaram apressadamente? De minha parte, que nem cheguei a esbravejar, mas me senti tentado a ir na onda, fica o pedido de desculpas formais, apenas por ter cogitado me apressar junto à turba.

Mas é neste acúmulo de erros que o caso de Kaique deve ser tomado como um ponto para reflexão a respeito de nossa sociedade, a relação dela com as instituições e a questão do preconceito no país. Pode-se tirar, no balanço final do caso, analisar alguns aspectos a partir das reações. Lamentando sempre e profundamente, claro, que para tais observações mais um jovem tenha perdido a vida e mais uma família esteja a sofrer a perda irreparável.

A primeira coisa a se notar neste caso é o descrédito de nossas instituições, como a polícia, por exemplo. Este descrédito não é pontual, mas quase consensual. Da falta de recursos, passando pelo descaso até chegar na pura incompetência, esta é a imagem que a instituição passa. Promover a reabilitação da confiança na polícia é algo necessário e urgente para que diminua na população a sensação de insegurança e desconfiança. Dois males que entranhados em grande parte da sociedade, que teme quase que indistintamente criminosos e policiais, desconfiando de ambos.

Mas para isso não basta atentar para a “imagem”, mas também para ações de limpeza interna, profissionalização, capacitação e preparo dos policiais. Afinal, eles também são vítimas de um descrédito em cascata: a população não confia neles, eles não confiam nos governos dos quais recebem ordens e o ciclo vai passando de elo em elo até arrebentar sempre no mais frágil: a população.

Outro aspecto, tão urgente e importante quanto o descrédito da polícia, é o problema da homofobia e da transfobia no Brasil. Este é mais complexo, tem raízes em setores da sociedade, na falta de informação e até em preceitos religiosos.

A rápida associação da morte de Kaique com crime de homofobia revela e tortamente se justifica pelo estado das coisas. A gravidade do problema serve mesmo de atenuante para as equivocadas e apressadas conclusões sobre a morte do rapaz, surgidas antes mesmo de provas ou indícios consistentes. O quadro é grave, muito mais do que parece.

Segundo matéria no jornal El País (leia aqui), “em 2012 foram registrados 338 assassinatos motivados por homofobia ou transfobia, 27% a mais que em 2011. Neste ano, recém estreado, já foram contabilizados 25 casos com gays, transexuais ou travestis como vítimas. O Brasil, desde 2008, concentra quase a metade do total de homicídios de transexuais, de acordo com o relatório da organização europeia Transgender Europe”.

Sendo assim, diante dos fatos, não é necessariamente absurdo - ainda que seja pouco justificável - que se conclua apressadamente sobre crime de homofobia diante de um quadro tão aterrador e que mostra o tamanho do problema aqui no Brasil.

Mais efetivo do que números e estatísticas pouco divulgadas, foram os ainda recentes casos de agressões covardes (com perdão da redundância) a homossexuais em São Paulo e que ganharam ressonância na mídia. Ainda frescos na memória, os casos serviram para chamar atenção sobre o problema da homofobia, que entrou na roda das discussões por algumas semanas.

Algo precisa ser feito para combater de forma eficaz esse preconceito pautado pela ignorância, mas sabemos que qualquer avanço legal neste sentido esbarra nas bancadas evangélicas, cujos líderes não se acanham em exibir, disseminar e incentivar “criminosamente” o preconceito e a discriminação contra minorias sexuais.

O criminosamente, aqui, fica entre aspas, justamente porque ainda faltam leis para isso, que de fato criminalizem a homofobia e a transfobia. Faltam estas leis justamente porque sua aprovação esbarra nestas bancadas das trevas, que insistem em manter apagada qualquer luz que ilumine avanços da humanidade e do humanismo.

Por fim, o último ponto está nas redes sociais, como bem lembrou o jornalista Alan Gripp na edição de hoje da Folha de S.Paulo (leia aqui). Mas pode-se ir além e lembrar dos aproveitadores de plantão. Blogueiros, colunistas e jornalistas apequenados por conclusões apressadas e opiniões agressivas que atentaram contra o básico da profissão jornalística: checar e ouvir.

Assim como a população em geral, não estes são imunes aos efeitos desviantes dos dois pontos anteriores: o descrédito da polícia e a crescente violência homofóbica. No entanto, os atenuantes anteriores cabem menos aos profissionais da imprensa, cuja responsabilidade é muito maior naquilo que dizem e publicam, seja num grande veículo, seja num blog ou na sua página do facebook.

Muitos desses se apressaram não apenas em concluir sem sustentação, mas também em surfar na polêmica, ganhar cliques, likes, compartilhamentos, ter seu nome e seu texto circulando.

A indignação é sempre justa, mas a acusação deve ser cautelosa. Exemplos na história da imprensa de injustiças cometidas por conclusões apressadas não faltam. Mesmo assim, parece que nunca aprendemos a lição.

No que diz respeito à homofobia violenta de nossa sociedade e sobre a escassa lisura e honestidade das investigações policiais estão todos certos em desconfiar, suspeitar e investigar. Mas concluir baseado apenas na primeira impressão é pedir para ficar manchado por equívoco grosseiro. É, reforce-se, equívoco grosseiro.

De positivo, fica a lição. Pena, no entanto, que não seja a primeira. Nem deverá ser a última.

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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Vagabundos e Pessoas de Bem


O que pode ter em comum uma secretária de escola privada, uma gestora de recursos humanos, um professor, um taxista, um jornalista, uma fisioterapeuta, uma diretora de curso de idiomas, um pastor evangélico formado em teologia e um policial militar? Resposta: todos são vagabundos, maloqueiros, vândalos e arruaceiros.

Mas há outra coisa em comum entre eles: uma rua chamada São Sepé. Era lá, no início dos anos 1990, onde muitas vezes nos encontrávamos. Uma rua no Jardim Brasil, bairro da periferia da zona norte de São Paulo. O motivo de ali ser um ponto de encontro é mais um exemplo da fronteira muito tênue entre vagabundos e pessoas de bem.

Sam e Meg: pessoas de bem
A descrição é difícil. Na rua São Sepé havia um longo muro. No meio do muro, na calçada estreita, havia um poste e neste poste havia um cabo de aço preso, que corria ao longo do muro até o outro poste. A altura deste cabo de aço e sua distância do muro, rente ao primeiro poste, permitia simular ali uma cesta de basquete, esporte pelo qual todos os vândalos citados acima eram fãs praticantes na juventude. Ali passávamos horas jogando e, inevitavelmente, incomodando o morador em frente ao poste, que era gente de bem.

Jovens que queriam apenas se divertir, passar algum tempo junto, praticar um esporte que gostavam. Mas ali, na periferia, em vez de praça, parque e quadra, havia um poste, um muro e um cabo de aço. E éramos felizes por tê-lo. Fora disso, seria o de sempre: o tédio.

Claro que incomodávamos o Sam e a Meg, apelido que demos para o casal que morava em frente ao poste e que vivia reclamando do barulho. A bola de basquete quicando no asfalto, a gritaria de quem jogava e de quem assistia, os cabeludos palavrões gritados uns contras os outros. Devia mesmo ser um inferno, admito, ainda mais agora que me tornei uma pessoa de bem.

Certamente Sam e Meg nos olhavam de trás das grades da janela da sala que ficava atrás das grades do portão da casa e se perguntavam (já duvidando) que futuro teriam aqueles vândalos boca-sujas e aquelas meninas que andavam com maloqueiros. Certamente nenhum.

Rolê de busão

Vagabundo tentando uma enterrada
A formação era variada. Na época não existia ainda telefone celular nem mp3. Mas nem por isso aqueles mesmos vagabundos arruaceiros deixavam de incomodar os passageiros do ônibus. Aglomerados no fundo, viajando mais de duas horas para chegar ao parque do Ibirapuera, cantavam músicas dos Racionais MC’s. As preferias eram “Fim de Semana no Parque” e “O Homem na Estrada”.

O que será que as pessoas de bem daquela época pensavam de nós? Pensavam que um dia até poderíamos nos tornar também pessoas de bem? Ou desejavam apenas que a polícia chegasse e nos fizesse calar a boca, nos ensinasse com cassetetes e tapas na cara a respeitar as pessoas decentes que queriam viajar em paz? Certamente, alguns até pensavam que devíamos ser proibidos de entrar nos ônibus.

Agora crescemos, nos tornamos pessoas de bem, e quando vemos um jovem da periferia com seu celular tocando funk em alto volume dentro do ônibus pensamos o mesmo. Que não tem futuro, que é um vagabundo sem educação, que deveria ser posto para fora do ônibus, marginal analfabeto e ignorante que é.

Estereotipar e acusar é mais fácil do que tentar entender. Mas a linha que separa vagabundos e pessoas de bem é mais fina do que parece. Talvez, na verdade, nem exista.
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Pessoas Que Excluí do Facebook



Aconteceu quando o debate era a redução da maioridade penal. Aconteceu quando o debate eram as manifestações de rua. Acontece agora quando o debate são os “rolezinhos” e a acontece também sempre que chega uma nova edição do BBB. Na verdade, acontece sempre que surge alguma polêmica capaz de mobilizar opiniões e gostos divergentes.

Nesses casos, renova-se sempre a onda no facebook de bloquear e excluir pessoas que estão “enchendo o saco” com seus compartilhamentos, opiniões, torcidas, indignações ou reclamando de tudo isso, ou do contrário de tudo isso. As justificativas são sempre de que se está excluindo de sua vida pessoas “idiotas”, “ignorantes”, “burras”, “reacionárias”, “preconceituosas” e outros tipos com adjetivos não muito elogiosos.

Pessoalmente, tenho por princípio aceitar qualquer pedido de amizade na rede social e tenho também por princípio jamais excluir qualquer pessoa. E continuo firme nesse princípio. Portanto, o título deste texto é apenas uma armadilha para atraí-lo até aqui. Mas já que chegou, porque não fica e lê o resto?

Claro que, em certa medida, até entendo o impulso de quem costuma sair fazendo as tais limpezas nas suas respectivas listas de contatos. Às vezes a coisa fica bem irritante, reconheço. E, afinal, cada um gere sua vida nas redes da maneira que achar melhor. Mas vejo que parte dessas pessoas que fazem essas exclusões costuma defender princípios como democracia, liberdade e diversidade. Não haveria nisso uma incoerência gritante?

Se no simples convívio virtual - quando basta uma simples rolagem de página para mudar de assunto - essas pessoas se mostram incapazes de aceitar o pensamento oposto, a divergência de ideias, ou mesmo a suposta “ignorância” do outro sem resistir a um impulso ceifador de silenciar o que o desagrada, como podem exigir democracia, liberdade e diversidade? Ou esses três conceitos só valem para aquilo que ela acha certo?

Naturalmente, estou sendo simplificador e não posso de forma alguma querer que as pessoas interajam nas redes sociais de forma padronizada. Muito menos que o façam do modo como acho correto, porque cada um faz de sua vida o que bem entender e não estou aqui para julgar nem ser farol de nada. Só não vejo problema em discutir e levantar algumas questões, o que, possivelmente, poderá me colocar na lista dos excluídos de alguns amigos.

De fato, o que determina quem vai fazer parte da vida virtual das pessoas é como cada uma encara essa tal rede social.

Há, por exemplo, quem a use para fins profissionais e só aceite contatos de trabalho. Há quem crie regras malucas, como uma amiga minha que limita em 50 o número de amigos no facebook: para entrar alguém novo tem de sair alguém antigo. E há, claro, o direito universal e incontestável de você conviver apenas com quem você quer conviver.

O que pergunto é se, apesar de qualquer opção pessoal que não me cabe julgar ou inferir, não estaríamos desperdiçando uma excelente ferramenta para troca de informações e debate? Mais ainda, não estaríamos perdendo a chance de conhecer como o outro pensa e a chance de aprender a conviver com isso e mesmo a chance de, desde que respeitosamente, tentar mudar isso? Ou mesmo desperdiçando a chance de se permitir mudar de opinião, assumir algum equívoco, aprender algo novo. Ou você acha que está sempre certo sobre tudo e sabe tudo que precisa saber?

Já foi dito por estudiosos que esse comportamento, muito típico das redes sociais, traz um risco: o de se cercar apenas de pessoas que pensam igual a você. Este risco é menor na vida real cotidiana. Com exceção da escolha de nossas amizades mais próximas, somos obrigados a conviver com a diversidade em ambientes como o trabalho, salas de aula, espaços públicos e reuniões familiares (afinal, parente a gente não escolhe, no máximo tolera). Assim, é mais difícil cercar-se apenas de gente que pensa como você.

O perigo de uma rede social seletiva (justamente ela, que permite possibilidades tão amplas) é a perda de contato com a diversidade. O isolamento em grupos concordantes apenas empobrece sua visão de mundo e limita as perspectivas da realidade: de como as pessoas pensam e do que elas gostam, para o bem e para o mal, ainda que estes sejam conceitos que dependem muitas vezes de sua própria visão de mundo.

Claro que uma rede social como o facebook não pode ser levada plenamente a sério como uma expressão da realidade, de como são ou de como vivem as pessoas. Sabe-se que na rede a tal vida exposta é sempre fragmentária e seletiva. Pessoas tentam fazer os outros acreditarem que levam uma vida feliz e agitada postando fotos de momentos felizes, quando certamente estas pessoas têm uma vida ordinária, monótona e normal como qualquer outra. A foto feliz é só um fragmento da vida dela, selecionada especialmente para dar a impressão de felicidade.

Também há pessoas que tendem a ser sempre engraçadas e outras que escrevem longos textos para parecerem inteligentes e ganhar dos outros o respeito que sua baixa autoestima e péssima capacidade oratória não permitem no convívio real. Ops!

Seja como for, o que tento reforçar aqui é uma visão das redes sociais como ferramenta rica em possibilidades, não como representação plena e final da realidade e do pensamento das pessoas, que são, obviamente, muito mais complexas e interessantes do que podem demonstrar por aqui.

Assim, vejo as redes sociais como um espaço rico para debate, para opiniões e também para diversão. Mas pode ser também uma oportunidade de se ampliar a visão sobre o diferente, o oposto e o divergente, coisas fundamentais na construção da cidadania e da compreensão da realidade. Sem falar na tolerância, algo sempre bonito de falar, mas difícil de praticar. Pois é nesta tentativa, cheia de fracassos pontuais, que insisto em jamais bloquear ou excluir quem quer que seja no meu facebook. Por mais irritações que isso me cause.
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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A Receita Pronta

Se ainda não é algo que possa ser chamado de fenômeno, tende a se tornar em breve. Ao menos as instituições estão seguindo a receita de junho passado para que se torne.

Até o último final de semana, os chamados "rolezinhos" vinham acontecendo com razoável grau de previsibilidade: algum desconforto para os shoppings e seus clientes mais habituais e só. Até que a PM usou de sua típica delicadeza para dispersar um grupo no shopping Itaquera.

Agressão gratuita, bala de borracha, gás, enfim, o kit completo do despreparo. E olha que desta vez nem precisou de editorial clamando para que se retomassem os shoppings dando um basta à toda aquela bandalha. Sem falar nas liminares concedidas pela Justiça, ainda bastante mal explicadas.

Pois é desse encadeamento de equívocos, como foram equivocados os editoriais e a resposta da polícia em junho passado, que pode vir a formalização de fenômeno desses rolezinhos. Pode vir daí, dos típicos equívocos das elites, repetidos por falta de memória ou por burrice pura e simples, o crescimento e a expansão desse fenômeno.

Mas diferente das jornadas de junho, que começaram capitaneadas por um grupo, o Movimento Passe Livre, e uma bandeira, a redução da tarifa de ônibus e metro recém reajustada, os rolezinhos surgem de forma quase espontânea, querendo apenas zoar, paquerar, dar uns beijos, olhar umas vitrines. Em suma: ver e ser visto. Nada diferente do que quer (ou quis) qualquer jovem, de qualquer classe social.

Pois sua legitimidade nasce e pode se chamar fenômeno justamente pela falta de bandeira e de liderança. O que, aliás, é o que vem dando um nó na cabeça de analistas, sociólogos, jornalistas e sabidos em geral desde o ano passado. Não há bandeira, não há exigência, não há diretoria, assembleia, nada disso. Só o desejo de estar, conclamado por rede social, sem nenhum propósito aparente que não seja “causar”, que na linguagem dessa geração quer dizer aparecer e provocar.

Contudo, é desse despropósito aparente que deveria vir a observação mais aguda do fenômeno. Se deixarmos a preguiça, a simplificação e o preconceito de lado, veremos que na entrelinha do gesto há uma causa, uma revindicação não formulada e não articulada. Talvez porque eles mesmos não saibam articulá-la, como quem sente que algo está errado, mas não sabe dizer o quê, seja por falta de recursos retóricos ou de compreensão do todo.

Mas como uma sociedade é um tipo de organismo vivo, a doença incubada em algum momento apresenta seus sintomas. Mas esses sintomas nem sempre são claros. Daí a necessidade de interesse e atenção para entender o que está acontecendo de fato, em vez de receitar uma aspirina, feita de liminar e bala de borracha.

Mas entre os sintomas, o mais revelador é sobre nossa sociedade. Mais deprimente do que uma sociedade em que as insatisfações de classe precisem se mostrar mediadas pelo consumo e seus símbolos de status, é a forma como esta sociedade está lidando com isso.

Não quer saber de ouvir, entender, observar e identificar o que há por trás dele, nem que aspetos e sintomas ele traz. Manda logo uma liminar, manda revistar, proibir, restringir, expulsar. É como se da periferia, de pessoas que ouvem funk, que vestem aquelas roupas, que têm aquele vocabulário e aquela cor de pele, não pudesse vir outra coisa que não fosse coisa ruim.

Como dizem os americanos: da última vez que fui checar, isso ainda se chamava preconceito.
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sábado, 21 de dezembro de 2013

O Articulista Lego


Ler jornais às sextas-feiras. Ai, meu Deus! Pergunta que sempre volta: quão raso precisa ser um articulista para ocupar nobre espaço e ainda faturar algum com isso?

Ao que se vê, profundidade e inteligência não são mais exigências eliminatórias. Basta, talvez, que se saiba bem disfarçar a nula profundidade por trás de um discurso pernóstico, empolado de citações, mas cuja estrutura não resiste a um esbarrão de mínima inteligência.

Ou seja, parece que basta ter lido muito, decorado algumas sentenças de efeito (ou saber buscá-las no Google ou no Wikipédia) e empilhá-las como se fossem peças de lego. Assim, com uma peça encaixada na outra, se reproduz algum pensamento, mas que não se articula, porque é só um arremedo de pensamento, não um pensamento autêntico. É um pensamento lego.

A graça (leia-se tristeza) e ironia disso é que são chamados de articulistas. A palavra vem de artículo, que pode ser uma parte de um trabalho escrito ou uma articulação óssea (veja! também sei pesquisar na Wikipédia, posso escrever no seu nobre espaço?). Porém, ao menos às sextas-feiras, alguns desses articulistas não produzem articulação, como se seus textos fossem bonecos de lego.

Pelo visto, a imprensa brasileira está criando um novo tipo de articulista, o "articulista lego": parece que pensa, parece inteligente, mas é só um amontoado de peças, quase sempre bem encaixadas, mas com uma estrutura dura, sem articulação. E, pior, desmontáveis por qualquer criança que já engatinhe.

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sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A semelhança entre depredação e redução da maioridade penal



É possível notar, a partir das recentes manifestações, uma insuspeitada semelhança entre a defesa de atos de depredação e a defesa da redução da maioridade penal. Ainda que os dois gestos pareçam estar em lados opostos de uma mediana linha de pensamento, os discursos por trás deles se assemelham inadvertidamente pela banalização de um revide inócuo. Traduzindo: são iguais em desinteligência e ineficácia.

Isso acontece porque, em ambos os casos, a defesa ou justificativa dos dois pensamentos partem sempre muito mais de uma indignação exasperada contra o estado das coisas do que de uma reflexão honesta e madura sobre como mudar esse estado das coisas.

Tomemos como exemplo as depredações de agências bancárias. Com boa vontade, vamos desconsiderar qualquer gratuidade estúpido-juvenil e atribuir a elas o discurso que geralmente se atribui. Assim, essas depredações seriam um ataque a ícones de um sistema perverso, datadamente chamado de capitalismo.

Esses ataques seriam uma demonstração física do tamanho da revolta contra um sistema fomentador da desigualdade social, do enriquecimento de poucos à custa do trabalho de muitos.

Dessa forma, o gesto (a depredação) serve como retrato extremado e até mesmo discursivo, que revela em si a abjeção desse sistema sujo. Uma imundice contra a qual se deve manifestar e lutar em busca de mudanças.

Na outra ponta, de maneira mais passiva, mas não menos virulenta, há a defesa da redução da maioridade penal. Um discurso que, assim como as depredações, apoia-se na indignação. No caso, a indignação vem das “pessoas de bem” ante os altos níveis de violência e criminalidade.

Nesse discurso há também um alvo, os criminosos menores de idade, que por brandura das leis seriam estimulados ao crime, tornando-se uma ameaça para a segurança dessas “pessoas de bem”, assim como para suas respectivas famílias e seu honorável patrimônio.

Em comum entre os dois discursos está um misto de miopia e ingenuidade, somado a uma postura combativa, porém inócua. Ambos são justos e legítimos em seu apelo indignativo; ambos são até válidos nas suas proposições contra um estado das coisas, mas não servem muito a uma resposta eficaz que mude esse estado das coisas.

Isso porque nenhum dos dois discursos, através de suas respectivas chuvas de pedras contra vidraças ou perdigotos contra a lógica, vai além da satisfação de um baixo desejo de revide, de uma extremada ação que serve apenas para reduzir um pouco a imensa frustração e impotência diante de crimes e abusos que nos afetam cotidianamente.

Não há estudos que mostrem que a redução da maioridade penal representará uma redução nos índices de criminalidade. Como não há registro de que a quebra de agências bancárias tenha alguma vez desestabilizado o sistema financeiro. Sendo assim, ambas ações servem apenas como uma agressão sem objetividade ao sintoma e não à doença.

Ainda que em ambos os casos pessoas inteligentes e articuladas saiam em sua defesa, a impressão que fica é que importa menos a solução do problema do que a satisfação pessoal em ver alguns alvos de nossa indignação sofrerem a virulência do revide de nossa impotência real.

As indignações que pautam e dão sustentação aos dois princípios são justas e encontram voz em parte respeitável da sociedade. Mas revelam muito pouco de inteligência e conhecimento das reais causas do problema.

A questão é que a solução dos problemas contra os quais se tem gritado nas ruas e nas pesquisas de opinião demandam mais esforço do que atirar pedras ou colocar na penitenciária menores de 18 anos.

No entanto, engajar-se num esforço real e articulado, que vá além de discursos e faniquitos encapuzados, exige um comprometimento a que poucos estão dispostos.

Seja por preguiça, seja por individualismo, seja por simples incapacidade intelectual, fica-se sempre na superfície. Nunca se vai ao fundo. Afinal, reclamar e apontar alvos é sempre mais fácil, cômodo – e até divertido – do que fazer algo efetivo e cotidiano para mudar esse estado das coisas. Agredir exige menos esforço que pensar.
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Ilustrações: M.C. Escher